Era o mês de novembro de 1975. Eu vivia no Canadá com meu irmão e minhas duas irmãs. Vivíamos em um apartamento na Rua Alma, no Bairro Villeray, na parte leste de Montreal. Era um edifício pequeno e marrom como quase todas as casas naquele país frio. Em novembro as árvores estavam sem folhas, o frio era intenso e nevava de vez em quando.
Pois naquela manhã nublada recebemos a visita de uma amiga nossa chamada Theóphila, uma mulher negra, brasileira do Rio de Janeiro. Ela tomou um café conosco e, sentada à mesa da cozinha, disse com seu jeito pachorrento de mulher gorda:
-Tenho uma excelente novidade para vocês.
-Diga, Theóphila!
-Chegou na cidade um pároco brasileiro chamado Morocco. Padre Morocco. Ele é de Pelotas, Rio Grande do Sul. Ele veio fazer um curso de Teologia na Universidade de Montreal. E ele vai administrar uma missa no maior templo da América do Norte, a Igreja de Notre Dame.
-E você veio aqui nos convidar para assistir a essa missa.
-Mais que isso. Vocês vão participar da missa. O Padre Morocco necessita de ajudantes para ler em alguns versos da Bíblia em voz alta, no altar da igreja. Então eu indiquei vocês. Que tal?
Eu disse:
-Para nós é um honra.
Minha irmã mais velha disse com ironia:
-Emanuel sempre foi religioso. No Brasil meu pai quase bateu nele, porque ele andava com um rapaz católico do Movimento Carismático. Somos ateus.
-Mas isso não é importante. –Continuou Theóphila. –O importante é que vocês estarão na Igreja Notre Dame de Montréal, diante da alta sociedade local, a elite. Que chique! Só gente rica! Automóveis de luxo e gente importante. O Consulado do Brasil estará em peso lá, incluindo a família do Cônsul Gomide, aquele que foi sequestrado em Montevidéu pelos tupamaros alguns anos atrás, lembram?
E olhando para mim ela disse em um tom jocoso:
-O cônsul tem uma filha linda, a Beatriz. Você vai gostar dela, seu “religioso”.
Eu repliquei:
-Nenhuma religião impede as pessoas de namorar.
-Está bem. Vou trazer o Padre Morocco aqui amanhã à noite, certo?
-Certo.
Fomos apresentados ao Padre Morocco, um homem alto e gordo, branco, de olhos azuis. Theóphila veio com ele, toda atenciosa e simpática, parecendo uma mulher católica de verdade.
Minhas irmãs prepararam uma janta para eles. Após comermos, o pároco nos explicou todo o procedimento: o horário da missa, os versos bíblicos que leríamos e tudo o mais. Um automóvel do Consulado Brasileiro, conduzido pelo motorista do cônsul, estaria a nossa disposição.
Assim foi feito. Tudo deu certo conforme o planejado. Estava nevando, fazendo frio. Todo mundo elegante: os homens de terno, as mulheres com seus belos vestidos da moda.
Lemos os versos da Bíblia com muita clareza. Fiquei admirado com a beleza daquela igreja.
Os carros de luxo, o povo rico, nada daquilo me interessava. Eu contemplava a igreja de arquitetura gótica. Por fora lembrava a Notre Dame de Paris, famosa pelo filme “O Corcunda de Notre Dame”. Mas por dentro, aqueles dramáticos tons de um azul profundo, pontilhados de estrelas douradas. O altar principal era uma impactante obra de arte, com sua renda de bronze dourado.
Alguém tocava um poderoso órgão com sete mil tubos, a Ave Maria de Schubert. As pessoas me cumprimentavam com um aperto de mão e diziam:
-Parabéns! Você lê muito bem a Bíblia. Você tem a voz de um locutor de rádio.
-Obrigado.
Uma voz feminina falou:
-Você tem a voz do Pelé.
Olhei para ela e fiquei admirado com sua beleza. Ela me estendeu a mão e disse:
-Olá! Meu nome é Beatriz. Sou a filha do cônsul.
Apertei-lhe a mão e repliquei:
-E eu sou um estudante brasileiro no Canadá.
-Venha comigo. Quero apresentá-lo a minha família.
-Será um prazer.
Alguém tinha aberto a porta da igreja e uma tempestade de neve caía lá fora. A voz de barítono do Padre Morocco ainda ressoava em meus ouvidos: “Te Deum Ladamos”.
Taguatinga, 12 de maio de 2008.