O feio em nós

“Vivendo e aprendendo a jogar, vivendo e aprendendo a jogar, nem sempre ganhando, nem sempre perdendo mas, aprendendo a jogar”… (música interpretada por Elis Regina)

 

Sinto que só agora, aos quase 35 anos, é que aprendi as regras do jogo da vida. Pode ter sido proteção demais dos pais ou só um espírito despreparado para o dia a dia, mas o fato é que percebo agora o quanto fui ingênua e o quanto acreditei no que não devia, e não acreditei no que devia. Isso é uma grande revelação.

 

Eu sempre acreditei que o ser humano é um ser de luz, impreterivelmente. E que qualquer maldade que fizéssemos era só pelas circunstâncias (falta de oportunidade dos mais pobres, por exemplo, gera ladrões) ou seja, ninguém era essencialmente mal, mas só lutava pra sobreviver. Hoje eu percebo que não.

 

Percebo que temos um lado mais profundo, mais feio e mais difícil, bem difícil de aceitar, chamado sombra. Eu realmente achava que entendia o que era sombra depois de ler meia dúzia de textos do Jung mas não é bem assim. Só quando eu vi na prática, e em mim mesma, é que a sombra me mostrou quem era.

 

Primeiro, eu sonhei com ela. Sonhei que eu estava num jogo, tipo um vídeo-game com uma história. Na historinha, eu precisava mentir e enganar pra me dar bem na vida. Acordei me sentindo um monstro, me sentindo mal. Mas depois que pensei bastante, entendi que não era bem assim.

 

Pois bem, precisamos disso.

 

Sei que a informação é meio bombástica, mas precisamos de nossa sombra de nosso lado mal, para sobreviver e nos darmos bem na vida.

 

Ontem mesmo, na novela das 8h, uma das personagens dizia que a fulana era rica, mas sofria tanto. No Brasil, as novelas, os filmes e tudo mais, sempre nos levam a pensar que ser rico é ruim. Que ser rico é ter que sofrer ou ser desonesto, nada mais longe da verdade. Os ricos passam por tragédias tanto quanto os pobres, com a diferença de que os ricos tem recursos pra mandar um filho fazer um transplante nos EUA se necessário, e os pobres amargam na fila do SUS. Isso me mostrou o quanto somos educados a sermos bons demais, a não queremos demais da vida, a nos contentar com pouco.

 

Só que, enquanto nós queremos pouco, nos contentamos com isso, a Globo enriquece.

 

Estou falando dessa novela, mas estenda pra tudo. Sempre haverá alguém que quer dominar e, pra isso, precisam haver dominados. Na verdade, é um grande jogo de sombras. As sombras daqui duelam com as de lá. Eu posso ouvir a mulher da novela falar isso e pensar “nossa, eu não quero ser rica, então” e isso fará com que os dominados continuem sua missão. Ou eu posso pensar: “às favas, isso é uma grande mentira” e a dominadora da vez serei eu.

 

Pois é, não existe muita saída. Ou você domina, se domina, ou é dominado pelos outros. E sim, precisamos aprender a jogar o jogo da vida. Precisamos deixar de pensar que todos são mais espertos do que nós, que todos vão entender os nosso truques. Porque eles não entendem! Só porque pra você é fácil de perceber, não quer dizer que seja para todo mundo.

 

Outro dia mesmo eu vi uma conhecida dizendo que faria um truque destes com o marido. Não era nada de grave, ela só queria gastar um pouco mais do que costuma com uma blusa magnífica no shopping. Ela separou os gastos entre supermercado, feira e uma mamadeira nova para a filha e comprou a blusa. Eu, de fora pensei “claro que ele vai saber que isso é um truque, não percebe que a menina tem 12 mamadeiras?” Ele não percebeu e minha colega apareceu na festa do prédio lindíssima, com a blusa e uma dose extra de cara de pau.

 

Quem é ligado à espiritualidade, então, meu Deus, como é mais complicado! Temos profundas crenças no bem (e isso é uma coisa ótima) e isso nos faz viver mal na vida real. Mas encarnamos neste planeta, munidos do que temos, por algum motivo (e não se iluda que foi só pra ajudar as pessoas da sua família a evoluírem). Encarnamos justamente porque talvez, precisemos saber lidar bem com a nossa sombra, com o nosso lado malvado, malévolo, ruim. Precisamos usar os truques, valorizar a nossa sabedoria e a nossa esperteza, e saber que é preciso usar a inteligência justamente pra isso.

 

Inteligência não é só pra fazer conta de cabeça, mas pra nos ajudar a jogar o jogo da vida. Ficar fora dele pode nos custar muito, muito caro!