O mundo compreendeu e o dia amanheceu em paz

O mundo compreendeu e o dia amanheceu em paz

Era uma manhã de 24 de dezembro de 1973. Eu estava em Montreal, no Canadá. Eu vivia em uma pequena casa em um bairro operário da cidade. Eu não estava só. Naquela época eu morava com meu irmão e minhas duas irmãs. Era o tempo de férias. Férias de quinze dias, pois no Canadá o ano escolar começa em setembro e termina em junho, tendo um recesso de quinze dias para o Natal e o Ano Novo. Eu tinha dezoito anos de idade.

Levantei-me cedo naquela manhã nublada e escura. Eu dormia em cima do piso da sala, junto com meu irmão. Minhas duas irmãs dormiam em um beliche, uma na cama de cima, a outra na cama de baixo. Fazia frio e eu me sentia só. Eu olhava através da janela fechada, o vidro fosco pelo gelo, a neve encobrindo quase tudo. Mas eu podia ver a rua.

Era o inverno canadense, a neve estava por toda parte, o vento soprava e tudo parecia um deserto lá fora. Apenas os automóveis estacionados. Acostumado ao clima tropical do Brasil, eu estranhava tudo aquilo. Mas ao mesmo tempo eu estava fascinado por estar ali, em um país desenvolvido, onde tudo era organizado e avançado.

A um dado momento tenho vontade de sair para comprar pão, como eu fazia no Brasil. Então me lembro que no Canadá ninguém compra pão de manhã. As pessoas lá preferem comprar seus pães nos supermercados à noite, para o dia seguinte.

Fui para a cozinha, acendi a luz – porque o Sol ainda não havia aparecido. Era 24 de dezembro; o Sol nasceria às nove horas, por causa do solstício de inverno. Aquele seria o dia mais curto do ano: das nove às dezesseis horas. A neve caía lá fora.

Após acender a luz da cozinha, liguei a torradeira e pus duas fatias de pão sovado dentro da máquina. Tirei um pote de margarina do refrigeraqdor e uma faca da gaveta do armário. A velha torradeira esquentou e eu a desliguei para não queimar as fatias de pão.

Comi as torradas com margarina e esquentei água em uma panela de alumínio sobre o fogão elétrico. Preparei um café solúvel e bebi-o. Eu sentia frio.

Vesti um casaco, calcei um par de botas, um par de luvas, um chapéu e saí. Desci as escadas cobertas de neve e caminhei para a Plaza Saint Hubert à procura de uma panificadora. Tudo estava fechado.

Na Plaza Saint Hubert as luzes estavam acesas, toda uma decoração de Natal. Mas as lojas estavam fechadas. Ainda não eram nove horas. O céu estava escuro, a neve caía e somente eu caminhava solitário sobre a calçada. Eu me sentia como “o homem da capa preta”.

Subitamente uma viatura da polícia passou perto de mim com a luzes acesas. Os policiais me olhavam atenciosamente. Eu sorri para eles e disse:

-Bom dia.

Um deles resmungou alguma coisa, ele não me pareceu estar de bom humor. Então eu disse:

-Feliz Natal!

Aquelas palavras causaram uma mudança naquele policial. Ele sorriu, como que recordando de sua infância e olhando-me com um ar jovial, replicou:

-Feliz Natal.

A viatura da polícia seguiu em frente, as lojas começaram a ser abertas e o dia clareou. O povo já estava nas calçadas e os ônibus circulavam. As luzes e as decorações de Natal eram desligadas aos poucos. Então recordei os últimos versos daquela canção de Chico Buarque, intitulada “Valsinha”: o mundo compreendeu e o dia amanheceu em paz.